quinta-feira, 22 de maio de 2008

Quando um rei perde o trono

Fui obrigado a suspender a caça. Não acreditava no que via. Debrucei-me ao chão, em meio ao mato. Não queria alertar a natureza móvel com a minha presença. Assim como as plantas tremulavam com o vento, minha juba parecia nuvens impacientes. Meu peito era um caldeirão efervescente. Minhas patas sentiam um tremor de terra. A única coisa imóvel em mim era os olhos.


Desde jovem já surpreendia todos os meus inimigos. Invejosos. Por não reconhecerem minha majestade, hoje, são assumidamente minhas presas fáceis. Não importa tamanho e por qual topografia acidentada eles correm. Ofereço 30 metros de distância. Não perco viagem. Desfaço a vida com o que sustenta minhas garras. Escorre sangue entre meus dentes. Vejo pavor nos olhos daqueles que, por mim, não foram escolhidos.


Uma hora e meia de sono. Margeando a luz da lua, saí à procura. Parecia um surto. É sério. Um rei vagando em meio ao próprio desgoverno. Mantive a cabeça erguida, para não cair no sem fim de minha inconsciência.


Os primeiros bichos foram saindo de suas manjadas tocas. Ameacei acometer. Fui travado. Não era o que eu procurava. Outros animais apareceram. Eram grandes, saborosos. Tinha que ser aqueles que eu queria. O cheiro deles invadiu meu instinto, que nem se atiçou. Eles se distanciaram e sumiram do horizonte de meus olhos.


Com saudade da terra, o sol tomou o lugar da lua. E me flagrou andando, com um suor jamais causado pelos leves raios matinais. A insanidade rotulou meu semblante. Chega! É Deus no céu; e eu na selva! Um rei não pode ter dúvidas, muito menos indefinições diante do inexistente. Resolvi reduzir a população local.


Foi quando vi algo anormal. Eu acabara de rasgar um filhote de búfalo. A poeira baixou. Caminhei lentamente, sentei-me. Não houve a reciprocidade de olhar. Completamente ignorado. Senti sede, fome, receio, baque, uma abstinência viril de coragem. Sabia que retornaria a vagar sozinho, a demarcar território. Mas, só quando fosse libertado das garras daquela formosa leoa.

Um comentário:

Unknown disse...

Posso dizer que essa é uma das mais belas q já escreveu!Nunca deixe esse dom das palavras se apagar em vc!
bj wal