sábado, 10 de maio de 2008

Contas da vida

“Você hoje pra mim é a faixa seis/ Do lado B/ Do meu último LP/ Aquela que o programador do rádio nunca toca/ Aquela que o divulgador do disco evita/ Aquela que fica espremida entre a quinta/ A quinta faixa e o final da fita” (Faixa Seis – Sérgio Sampaio)


Confissão com simplicidade. Foi o que presenciei hoje. Antes, percorri uns três lugares para pagar essas contas, que afirmam que a vida tem preço. Foi exatamente no último local que retratei a idéia dessa tentativa de crônica. Estava eu em uma fila, consideravelmente, grande. À minha espera, além de vários, tinha um senhor com mais de 80 anos. Um jovem. Falante. Brincalhão.

Isso foi o que captei. Esse senhor brincou com algumas pessoas ao redor. Porém nem todas percebiam – não sei se não ouviam o que ele dizia ou se não se importavam com ele. Enfim, me divertir gradativamente com ele. Nossa! Eram piadinhas infantis, do tipo de fazer rimas com a última palavra que os outros diziam.

Eu olhava para os lados e ninguém, da farmácia onde recebia o pagamento de contas, prestava atenção no que ele dizia. Me encantei com aquele senhor, de semblante cansado, e que me confessara que não suportava ficar por muito tempo em pé. Não havia assentos.

E ficamos por uns 15 minutos. Ali. Na espera de chegar ao caixa e conversando sobre a vida, nos intervalos de suas piadas coletivas – quase em vão. Às vezes, chegava a doer meu peito por causa da pecada preocupação. Acontece que esse senhor silenciava-se e seguia a um lugar desocupado. Sem cerimônias, descansava o braço sobre uma alta superfície e debruçava sua cabeça, posteriormente.

Esses segundos eram temíveis. Ele repetiu a cena por, no mínimo, três vezes. Sem opção, eu pensava até no pior. Aquele senhor, já meu amigo, se perdia no rito normal da vida diante da única pessoa que se importava com ele naquele momento: eu.

Numa de suas voltas, após as idas angustiantes, ele confessou que tinha mais de três filhos e que nenhum poderia fazer essas obrigações de pagar as contas. Não por desconsideração, mas porque todos moravam em algum lugar do planeta, distante dele.

Piadas eram para todos; no silêncio me revelou sobre a existência centenária de sua madrasta. E até disse que ela, na idade dele, era muito mais forte e vigorosa. Atualmente, baseado no dia do pagamento dessas contas, ela estava internada – praticamente com um pé no céu.

Ainda assim, ele não demonstrava tristeza. Mas, muito cansaço. Em poucos segundos, analisei que ele tinha uma fadiga de um século a mais em relação à mãe dele quando tinha sua idade. Talvez, sejam os enlatados e instantâneos que consumimos. Sei lá. Porém, ele sustentava muita pujança em suas palavras.

Poderia ser um tédio para mim ter que ficar naquela fila. Já que toda fila é insuportável. Só que não. Foi mais um aprendizado de como envelhecer com maestria. E ser um jovem com os pés no infinito.

Ao se aproximar do caixa, o convidei para tomar a minha frente. Nada grandioso, apenas cumpri com minha obrigação. Outra piada não foi reservada. “Antes, apenas a Escelsa recebia conta de luz. Depois os bancos começaram a receber também. Hoje, estou pagando na farmácia. Em breve, até eu estarei recebendo”.

Chegando na atendente, outra piada. Dessa vez, ele conseguiu arrancar sorrisos de outra pessoa, sem ser eu. A morena do caixa libertou sua alegria por entre os lábios ao ouvi-lo. E não poupou comentários, sustentando as anedotas de pequenas coisas da vida contadas por aquele jovem senhor.

Cheio de felicidade, mesclada ao visível cansaço, ele se despediu. Ainda tinha outros compromissos a cumprir. “Até lá!”. Para mim ficou o ensinamento que as maiores dificuldades da vida são criadas pela gente mesmo. Já bastam os problemas fixos, indesviáveis, tipo: as contas para pagar.

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